Foquemos nos 2%
Em um evento que participei recentemente, um palestrante usou de interessante analogia para elaborar sobre a evolução humana, argumentando que, geneticamente falando, temos apenas 2% de diferença para com um chimpanzé. Ou seja, somos 98% idênticos do ponto de vista genético a uma fera, a uma besta que vive em estado selvagem.
Curioso que sou, fui pesquisar sobre o assunto e descobri que não há exatamente um consenso sobre esse percentual, pois os cientistas situam a diferença entre 1.5 e 4%, o que convenhamos, não nos serve muito de consolo em nosso favor. O fato é que o que nos separa em termos genéticos de uma fera primitiva é um percentual bastante modesto. Essencialmente, somos mais animalescos do que o nosso orgulho humano gostaria de admitir.
Descobri também que os genes que regulam as reações emocionais, o aprendizado de hábitos, os apegos sociais, surgiram em nossos ancestrais primatas há muitos milhões de anos. Os genes que regulam o autocontrole, a autodireção e a cooperação surgiram a 2 milhões de anos. Mas essa estória fica realmente interessante quando se analisam os genes que versam sobre a criatividade e a autoconsciência. Esses genes surgiram nos nossos ancestrais humanos a aproximadamente “apenas” 100 mil anos e, o mais interessante, não estão presentes nos macacos. Ou seja, a encruzilhada genética é relativamente recente, e nos permitiu desenvolver a narrativa, a arte, a ciência, a sermos mais sociais e termos maior longevidade.
Seguindo este raciocínio, graças a estes meros 2% (para facilitação, vamos ficar com este número) fomos capazes de erguer enormes e magnânimas construções, de produzir peças artísticas maravilhosas (impossível não pensar no teto da Capela Sistina), a criar todo tipo de música, a desenvolver as ciências, coisas que evidentemente nenhum animal foi ou será capaz de produzir. Mas para mim, o mais importante legado dos tais 2%, é a capacidade humana de elaborar sobre a vida em sociedade, criando os mais variados códigos de conduta e comportamento, e de articular sobre as mais diversas formas de se autogovernar, como a democracia grega, aprimorada dois mil anos mais tarde com a divisão governamental em três poderes autorreguladores. Algo tão sofisticado que mesmo hoje, séculos mais tarde, ainda temos dificuldade de entender e pôr em prática.
Tudo isso é realmente espantoso e nos leva a uma pretenciosa ilusão de que a distância que nos separa das bestas primitivas é imensa. Será mesmo?
Quando mais novo, li a respeito da transformação do cérebro humano através do tempo, e aprendi que dentro do nosso sistema nervoso é possível identificar o caminho percorrido de nossa evolução. Simplificando o tema para facilitar o entendimento, podemos dizer que temos ainda ativo em nós o cérebro de um lagarto, mais instintivo e primitivo, o cérebro de um mamífero, cuidadoso com a prole e mais sociável, e finalmente o córtex, responsável pelo raciocínio lógico. Estes “três cérebros” muitas vezes entram em conflito, uns com os outros. E então pergunto; quem ganha esta batalha? Muitas vezes temos reações instintivas, agressivas, violentas, bestiais até. São os 98% agindo sobre nós, levando-nos a deixar esquecidos no banco de trás os 2% que nos levaram à arquitetura, à pintura, à música, à ciência, aos códigos de ética e das leis, à democracia.
Pensemos sobre um grupo de chimpanzés ou gorilas. O processo de seleção de um líder é bastante simples. Basta o macho alpha bater no peito e subjugar pelo uso da força física os demais machos e, “voilà”, temos um líder. Ao analisarmos esse processo nada sofisticado, porém eficaz, se torna quase inevitável a analogia com certos modelos de liderança que ainda prosperam entre nós, “evoluídos humanos”, já que graças aos 98% ainda nos permitimos iludir por estereótipos semelhantes (que ao invés de bater no peito, batem na mesa) em todas as esferas da sociedade.
Cada vez que agimos de forma mais violenta, agressiva, impaciente, egoísta, estamos evidentemente privilegiando os 98% de nossa herança bestial. Quando maltratamos outros animais, seja por pura crueldade ou por fins recreativos, estamos nos situando nos 98%. Se optamos pela não aceitação das diferenças de raça, credo, opção sexual (ou seja, o rechaço irracional do diferente), estamos dando voz aos 98%. Nos momentos em que um homem subjuga uma mulher pela força ou uso do poder, o que está imperando são os 98%. Ao buscarmos a resolução de diferenças de opiniões pelo uso da força bruta e não pelo uso da razão dos argumentos, estamos priorizando os 98%. E finalmente, ao lançarmos mão do uso das armas em qualquer situação, estamos mais uma vez sucumbindo aos 98%.
Foram necessários incontáveis anos de evolução para que os tais 2% nos separassem dos nossos ancestrais símios. Mas o fato inconteste é que hoje, nossa espécie conta com distinções significativas para que sejamos autoconscientes, pelo menos na maior parte do tempo. Já temos arsenal intelectual o suficiente para a autoanálise e autocrítica. Já somos evoluídos o bastante para fazermos melhores escolhas. Escolhas que privilegiem a não-violência, o respeito e porque não dizer, o amor ao próximo (sempre vou insistir que esse tipo de amor é uma questão de escolha, mais racional que sentimental), a preservação do planeta e de seus oceanos, da fauna e da flora. Já temos o nível de inteligência requerida para exercitar a tolerância das diferenças, a igualdade entre os sexos, e a resolução de problemas e disputas sem a necessidade de luta armada. Basta querer fazer uso desses recursos.
Fica então o apelo para que, racional e intencionalmente, foquemos nos 2% que nos separa dos chimpanzés. Se optarmos por operar nos 98% fazendo mal uso da imensa capacidade intelectual de que hoje dispomos, o resultado só poderá ser catastrófico, se não auto aniquilante. Cabe a cada um de nós garantir que estas centenas de milhares de anos sirvam para nos distinguir positivamente, impulsionando-nos a um mundo mais harmonioso e pacífico. A escolha é nossa. E trata-se de uma escolha que nos toca executar todos os dias, a cada interação humana.
E então, o que vai ser? Os 98 ou os 2%? Sondemos nossas atitudes no dia a dia e façamos a escolha certa.